terça-feira, 3 de setembro de 2013

DOURADAS PÍLULAS

Ovídio, poeta latino do começo da Era Cristã, bastante afamado na sociedade romana da época pelas poesias eróticas que escrevia, anotou  em uma delas, Os amores, um verso que nos parece sempre familiar: “ Sob o doce mel escondem-se venenos terríveis”. Tal sentença lembra tanto um discurso enganador, camuflado, falso, quanto o costume antigo de lambuzar antes com mel a borda do recipiente no qual uma criança teria de sorver um líquido ou remédio amargo.

Ainda no século I, outro latino, Marcial, satírico criador de curtos poemas chamados Epigramas, ao fazer menção a uma mulher que procurava dissimular algumas rugas no ventre usando farinha de fava, disse: “adoças-me os lábios”, isto em linguagem mais contemporâneas a nós, “douras a pílulas”.

Curiosamente, toda a vez na qual se inicia em nossa mídia o período mais intenso das propagandas eleitorais, é comum as pessoas se irritarem, reclamando da “invasão”, reagindo com sacarmos e dizendo o popular “me engana que eu gosto”. Cautela, ou, como se diria em outros tempos, alto lá! Essa é uma postura arrogante e ingênua, pois entende que os acobertamentos das reais intenções sejam uma exclusividade da publicidade presente no “mercado” da política, deixando de prestar atenção também na “política” do mercado, impregnada de douradas pílulas venenosas.

Quais são os mais comuns apelos do desvario materialista expostos à exaustão por algumas propagandas e desafiantes para uma inteligência que ultrapasse a mediocridade? Carros que desenvolvem tanta velocidade nas estradas que tem-se a impressão de que foram abolidas as leis de trânsito; liquidações em shopping com tão radical diminuição dos preços que antes eram cobrados que se fica imaginando o enorme “prejuízo” que as lojas terão; promoções de grandes redes de supermercados que anunciam vender tudo abaixo do custo a ponto de imaginarmos a anulação dos princípios básicos da ciência econômica e a iminente falência desses grupos; cantores sertanejos proclamando a qualidade insuperável de móveis  fabricados em escala industrial, levando-nos a supor que, agora sim, com esses produtos, a casa está bem mobiliada.

Mais? Os exemplos de indigência mental mascarada ainda são muitos. Atores televisos exaltando as vantagens de consórcios imobiliários e mostrando como só assim foi possível adquirirem a casa mostrada ao fundo e, felizmente, puderam ter “um teto”; heróis do esporte nacional recomendando o consumo de alguns complexos químicos para sustentar a saúde e a vitalidade exemplar; artistas da exibição erotizante sugerindo a obtenção de silhuetas similares às delas a partir do uso fugaz de aparelhos eletromecânicos e da ingestão de poções milagrosas; atores desejados e jovens recomendando beber, como eles, comente a cerveja que atrai todas as mulheres disponíveis, e insinuando serem todas (garrafas e mulheres) “one way” etc.

Precisas ter! Precisas comprar! Precisas experimentar! Precisas possuir! Precisas de tudo, qualquer custo, de qualquer modo! Ora, promessas vãs, momentaneamente alegrias, sentidos descartáveis; é o reino das aparências, o primado da reclusão em uma insaciável procura por uma resposta que está além do consumismo tresloucado. Doce mel, terrível veneno...


É por isso que Santo Agostinho (345-430), principal teólogo cristão da Patrística e extremamente atual em muitas de suas reflexões que fez, escreveu na obra A cidade de Deus (ao pensar sobre a felicidade mais perene) algo que nos serve sempre: “Não pode saciar a fome quem lambe pão pintado”. 

MARIO SÉRGIO COTELLA

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